quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

APELOS DO SENSÍVEL NA CENA DA DANÇA-PERFORMANCE Dramaturgias líquidas

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Pleiteando dramaturgias do tempo presente
A inquietude de quem cria no decorrer da história ganha novas feições e configurações a cada crise nova vivenciada pelas pessoas-sociedades-unidades-coletivos. Atrevo-me a dizer que Criar é antes de tudo reler contextos, plastificar poéticas cotidianas, estabelecer relações diretas ou indiretas com o público que se dispõe apreciar a obra exposta, instigar reflexões à cerca do homem contemporâneo, de suas angústias e ânsias. Mas criar o quê e com que propósito? Criar sozinho ou em parceria? Criar sempre ou em períodos necessários? Criar por satisfação pessoal ou para dividir? Criar pela necessidade de legitimar pesquisas e processos ou pela espera de um aplauso final? Confesso que no momento estou muito atento a possibilidades de construção (sozinho ou coletivamente) onde seja intensa a experiência dialógica do aprender, empreender, reaprender e, sobretudo a prática generosa do acolhimento, onde posso me disponibilizar à escuta dos sussurros lúcidos e eficazes de quem chega para colaborar na gestação de minha-nossa obra. Pensar no ato criativo como pressuposto de vivencias estéticas muito mais que na produção de um resultado exigido a ser apresentado me dá condições de compor espetáculos anti-espetaculares que poderão ou não sair da sala de ensaio, mas que inevitavelmente se tornarão documentos ou registros de descobertas conjuntas, materializações de ânsias estéticas, plásticas de anseios abstratos. Independente da obra ir para o palco ela existe para nós, codificou-se no nosso pensar-fazer dança. Mais cedo ou mais tarde esse documento se expressará, mesmo que por outras vias, mesmo tendo que ser destruído para dar lugar a um outro espetáculo, a um outro documento: rotina de quem escreve e erra, papel amassado, jogado no lixo... recomeços, mas o texto é o mesmo, está na ponta do lápis.
Muito baseado em experiências de criação desenvolvidas por artistas da dança, (principalmente por coreógrafos que trabalham a partir de projetos de pesquisa onde transitam corpo, improvisação e performance) e sobretudo a partir de minha vivência enquanto criador junto a “corpos de bailarinos” e “não-bailarinos” com a Cia Balé Baião de Itapipoca, consegui em linhas gerais rascunhar um percurso sistematizado do que podemos chamar “pontuações sobre o ato de criar na dança”:
·         Colocar-se em estado de acolhimento-percepção-adesão a contextos distintos ou apelos instantâneos. Deixar-se afetar;
·         Experimentar sem grandes pretensões a partir de roteiros de vivências que poderão ser sistematizados ou aleatórios. Suscitar a sugestão voluntária a fim de proporcionar processos colaborativos, tanto no âmbito individual como no coletivo;
·         Organizar-desorganizar-organizar os desenhos-imagens que sintetizarão as descobertas e edificações estéticas configuradas no experimento-estudo-corpo;
·         Compartilhar a obra pela necessidade de estabelecer relações-afetações com públicos distintos. Desfazer-se da obra entregando-a ao outro;
·         Estar disponível para refazer-resignificar a obra, quando surgir necessidade de potencializar sua plástica e poesia. Receber de volta a obra criada com todos os “atravessamentos” que fizeram nascer questões de ordem crítica e nisso mapear maneiras outras de ser, estar e dialogar com o trabalho criado-recriado.
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Dramaturgias do corpo comum
O exercício da “escuta atenta” vem me possibilitando fazer paralelos entre conceitos recentes de arte contemporânea com minha prática enquanto educador que cria, artista que cria consigo mesmo, artista que cria com a Cia Balé Baião e finalmente artista que cria com pessoas que nunca criaram ou que nunca dançaram, paralelos que me trazem questões bem particulares a refletir.
Venho perseguindo a ideia de pesquisar movimento expressivo e desenvolver material coreográfico com corpos ausentes de adestramentos técnicos em dança contemporânea, especificamente com adolescentes de bairros periféricos da cidade que trazem impressos em seus corpos o futebol, a capoeira e o hip hop como práticas físicas rotineiras, operários que trabalham em empresas-fábricas acarretados de memórias corporais enfadonhas e porque não dizer “dolorosas memórias” provindas do contato repetitivo com máquinas e sapatos, e recentemente com professores do ensino regular de uma escola profissionalizante de Itapipoca, corpos até então travados pela rotina frenética de sala de aula, frustrados pelas abdicações pessoais que a vida e o mercado os obrigaram a ter em nome da educação e do serviço exclusivo, enfim, corpos inéditos no panorama dança contemporânea de Itapipoca, cidade do interior que até então conhece e reconhece apenas o que é desenvolvido coreograficamente pela Cia Balé Baião.
Me interessa enquanto criador a poesia que reside na ação e na imobilidade do corpo enquanto organicidade, corpo enquanto memória sensorial e social. Minha obra se compõe a partir de uma perspectiva de construção cênica onde seja possível a plastificação de corpos inacabados (ideia de falta, vácuo, de vazio necessário, de começos sem meios ou finais), fragilizados (pelo “deixar a desejar” em força, em tônus muscular ou resistência física. Que sejam assumidos os limites e as carências corporais do criador-intérprete como potenciais cênicos a ser utilizados) e intensos (nas suas escolhas instantâneas, no ser e fazer aqui e agora pelo improviso casual ou direcionado. Que a verdade cênica seja medida nas opções de duração, tempo, espaço, peso, fluxo e força feitas pelo criador-intérprete no fazer-se cena pelo corpo).
Venho percebendo cada vez mais que a ação física por si própria está acarretada de “dramaturgias da hora”, de “poéticas súbitas” que testemunham o tempo real dos acontecimentos, nisso não se enquadra roteiros fechados com reações pré-meditadas ou previsíveis, tão pouco histórias lineares de cunho didático. Os fragmentos me interessam bem mais que as totalidades ou inteirezas das coisas. “Estar e fazer” no momento súbito é inevitavelmente compor verdades cênicas alicerçadas no “risco” e na “salvação”, na pergunta e na resposta dada no instante a se construir de “corpo presente”, em tempo real. Nesse sentido o Conflito Cênico poderá se configurar a partir de Circuitos Corporais onde contato corpo-a-corpo e corpo-espaço garantirão olhares, tatos, escutas e fragrâncias poéticas que atravessarão de distintas formas. Provocar maneiras de ver e ler o que se expõe garante a edificação de Plurais Dramaturgias no “outro atravessado”, no público-compositor-dramaturgo.
O corpo do criador não-bailarino, por não trazer máculas técnicas de “dança padrão”, consegue sob direção de um olhar-comando do dramaturgo, construir uma performance bruta, descomprometida com as “armaduras” do “belo dançarino” ou do “belo movimento” em detrimento do manifesto político, do refazer-se em cena para gerar fluxos de expressão. Interessa para o corpo dançante-performático de um “operário dançarino” o recondicionamento ou reconfiguração de sua condição de “corpo impossibilitado” para se firmar como “corpo possível”, de “corpo reprodutor” para “corpo criador-criação”, de “corpo proletariado, mão-de-obra barata” para “corpo emancipado”, autônomo, corpo pensante e pulsante de consciência-atitude transformadora. Estar em cena com esse corpo social já é a dramaturgia de um contexto concreto se materializando por si próprio. Não há necessidades de figurinos, trilha sonora, cenário e até mesmo de movimento elaborado. Basta que ele esteja e seja, que ele olhe-se e olhe para quem lhe olha, basta que ele espere às leituras de sua imobilidade despojada, basta que ele deixe que sejam vistos-devorados sua coluna curva, enrolada de tanto ficar em posições incorretas frente às máquinas, suas mãos ásperas e calejadas, resultado das repetitivas fricções, seus pés “achatados” e longos, ausentes de alongamento. Basta que ele seja o que for palpável de ser naquele espaço com aquele público.
Ver-debruçar-se desse “corpo comum” na cena-berlinda é ver-se nesse corpo que também sou eu, que sintetiza um pouco ou muito de mim, materialização das fragilidades e potências que residem no “ser comum” de um “cotidiano comum”, anti-espetacular. Identificar-me ou sentir-me parte desse “todo cênico” por me ver “apresentado” e não “representado” pelo corpo do dançarino-operário, torna “incomum” este lugar, esta habitação, estes corpos que se relacionam, nisso se instala uma dramaturgia de cunho estético-político, material experimental emergente em tempos de consumismo e globalização, válvula de escape frente a padronizações estéticas que ainda se sobrepõem e excluem artistas e obras de grandes circuitos que querem legitimar a dança como produto mercadológico, muito mais que agregar o experimental independente.

Conflito Cênico Sensorial
O corpo é um texto à ler-se. A dança, diferente do teatro clássico, não se faz através de textos aprendidos, de personagens que transitam dentro de uma história, de diálogos, de começos, meios e fins. Ela lida (ou deve lidar) com tecidos invisíveis que se cristalizam dentro de processos de composição de qualidades de presença do corpo, de ambiências e deslocamentos. Quando se fala em “conflito”se pensa em “diferenças”, oposições de forças, contradições ou caminhos contrários que irão se sobrepor sempre com o pretexto de deixar espaços vazios ou vácuos entre ambos. O “entre” provocado pela divergência de forças é o lugar do deleite, dos êxtases sensoriais, dos atravessamentos e reflexões, do ver-se dentro, entre ou distante dessas forças contrárias, do reencontro com substâncias essenciais do ser, invisibilidade que “deixa-se conhecer” ou revela-se no ato do sentir sentindo-se, do contemplar além do olho vendo-se e revendo-se, do tátil além do toque, tocando-se e deixando-se tocar.
Em meio a eloquentes discussões conceituais a cerca das artes no âmbito da pesquisa e produção contemporânea, permeia um “sumo” que extrapola termologias acadêmicas: a invenção do sensível enquanto obra de arte.
O que na verdade interessa é a potência poética da obra, sua capacidade de afetar e infectar, independente de ter se configurado dentro das tendências metodológicas, estéticas ou filosóficas apontadas. O conflito-poético do corpo sempre será antes de tudo o próprio corpo-sujeito-objeto. Estar e intervir no mundo é a gênese da teoria por vir. Antes das conclusões escritas e editadas que se firmem práticas de ordem individual ou coletiva.  É fundamental que o corpo com suas possibilidades e capacidades se veja experimentando na ânsia de criar “arquiteturas físicas” que dialoguem com os públicos vigentes. Cada lugar vai aspirar por um corpo específico, cada corpo uma singular necessidade de dança, cada dança um registro efêmero de perguntas e respostas que simultaneamente aparecem e se desintegram no corpo-memória-sentidos, cada público o seu olhar-sedento, sua experiência particular de relação com o mundo que o cerca e consequentemente sua forma de ler e reler, de ver-se e sentir-se na obra exposta. Eis o grande apelo da contemporaneidade: acolher muito mais que negar. Romper com pré-conceitos a cerca do que pode ou do que deve ser a dança numa perspectiva contemporânea, vislumbrando sobretudo possibilidades de encontro com os plurais olhares-anseios que diversificam por sua vez os lugares a se habitar. Em foco esteja à questão: Dramaturgia a ser construída-descontruída com quem? Onde?Como? Para quê?

PÁLPEBRAS E QUEBRANTOS (Gerson Moreno)
Olho de quem me olha
Olhado-devorado em atos-pedaços
Molha-me pálpebra
Chorosas meninas-velhas
Molhado sigo na berlinda-cena
Atravessando tecidos inquebrantáveis
Linhas-costuras em panos-trapos-pedaços
Molhado
Partido ao meio
Entre-atravessado
Imóvel fico à espera do anseio de me mover
Sigo parado, simplesmente atravessado em flechas-flecheiras
Estraçalhado em pedaços bem partidos faço-me corpo
Invento-me em presenças necessárias
Eficazes e desintegradas presenças
Refaço-me de novo em velho
Dou-me e retiro-me atirando-me no acaso
Contato em súbitos apelos do tempo real
Pelos apelos instantâneos integro-me
Pelos, jamais aparados
Cabelos, nunca cortados
Cabeça de novelos de lã
Salientes cotovelos
Fraturo-me para durar em intensidades finitas
Quebro-me sem pudor das pálpebras latentes
Refaço-me de corpo em anticorpo
De dança contra-dança
Desdanço
Retalho-me com emendas de memórias
Esqueço-me e peço desculpas
Lembro-me
Desenho-me sem riscos
Apago-me para não deixar marcas nem histórias
Escrevo-me nova-mente em de-mentes vontades
Repico-me
Colo-me com cuspes e partituras coreográficas
Componho-me no aqui e agora
Assumo o drama que me persegue
Assumo-me dono dessa dança até que seja dada
Dou-me
Recolho-te em pálpebras e palmas-meninas
Bandeja na mão
Hora de juntar os cacos
....
..
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Pesquisa de linguagem do Balé Baião


A Estética e a Poesia do Corpo fragilizado
Sempre escuto de outros coreógrafos e bailarinos que assistem aos espetáculos do Balé Baião a mesma afirmação: “teu trabalho é interessante principalmente pelos corpos comuns do elenco, pela naturalidade e tranqüilidade que demonstram em cena...”
Essa colocação por certo tempo me deixou pensativo sobre o que seriam esses “corpos comuns” e essa naturalidade, então comecei a investigar dentro da Cia que corpos estavam ali e que tipo de movimento eles me davam.
Fui percebendo que os primeiros elencos que acompanhei (foram quatro ao todo) não tiveram oportunidade de conhecer técnicas e códigos diversos de dança. Os dois primeiros elencos da Cia não desenvolveram a habilidade de criar seu próprio caminho coreográfico, resumindo-se a meros receptores de "passos". Sem falar do limite de "presença cênica" pela ausência de "corpos treinados", resultando em espetáculos repletos de coreografias complexas executadas por dançarinos que deixavam a desejar.
A partir do terceiro elenco houve um investimento prioritário na formação técnica dos bailarinos em exercício permanente da criação individual e coletiva do movimento expressivo.
Diante disso o que estava faltando nos bailarinos da Cia? A resposta veio nos laboratórios de criação. Percebi que era exatamente essa "falta" a responsável pela singularidade de meu trabalho coreográfico. Eu só precisava dar oportunidade para que cada bailarino preenchesse essa falta com autonomia e personalidade.
Desde que passei a trabalhar a partir da improvisação de cada um, não mais me incomodei com os chamados "corpos comuns", eles passaram a me fascinar. Entendi que não funcionava proporcionar nos bailarinos somente a capacidade de se manter natural, era preciso que fossem eruditos no que faziam, que seus corpos zelassem pelo intuitivo e ao mesmo tempo surpreendessem com o movimento técnico adquirido em aula. O que na verdade existe em todas as companhias de dança são corpos comuns que nunca deixarão de sentir dor se forem machucados, nem serão plenamente perfeitos mesmo sabendo executar sem erros a seqüência coreográfica aprendida. Não é privilégio do Balé Baião trabalhar com corpos comuns, pois todo corpo de qualquer bailarino traz em si características comuns à todos os outros corpos existentes no planeta, principalmente fragilidades que sempre nos alertam para a presença inevitável da imperfeição. O limite é parte do ser humano e existe para sinalizar o momento certo de não ir além, de parar para escutar, de aceitar as leis naturais da existência. No entanto, esse limite pode ser poético quando assumido em cena. Surge daí uma nova tentativa de superação desse limite, não baseada em "virtuosismos" desnecessários que geralmente fazem o público delirar e ao mesmo tempo o distancia daquela realidade cênica por não provocar adesão sensível ao que está sendo dançado. A grande novidade é permitir que em cena o corpo expresse sem temer suas fragilidades e nisso gere identificação no público, no sentido de "abrir portais" para que cada pessoa se perceba dentro do espetáculo, nas fragilidades e fortalezas dos corpos dos bailarinos. Esse "corpo comum" que se meche naturalmente é na verdade uma pessoa que resolveu dançar utilizando-se de todas as técnicas possíveis, porém priorizando valores cênicos de sua própria personalidade adquiridos no decorrer de sua história particular, em contato com distintos espaços e pessoas.
Procuro observar em aula o que os bailarinos trazem de elementos particulares que não devem ser destruídos em nome de uma técnica ensinada. Muitas vezes são "vícios" que se apresentam agressivamente aos nossos olhos, mas que naturalmente vão desaparecendo à proporção que o bailarino se alimenta de novas vivências corporais. Por outro lado, são trazidos gestos e movimentações originais que revelam a identidade e as características singulares do bailarino. Percebo com isso que a intuição jamais deve ser substituída por "receitas prontas" de como dançar. A dança deve ser insultada pelo professor e construída gradativamente pelo próprio bailarino a partir de sua pesquisa individual.
Dançar com a consciência de que o espetáculo expõe meu corpo, toda sua pequenez e grandeza, é possibilitar um novo olhar e uma nova concepção do que seja espetáculo, do que seja arte, do que seja dança. As miudezas passam a revelar suas expansões e os grandes movimentos as suas miudezas; cria-se um conflito que se apropria das inconstâncias, das buscas e achados do gesto humano.
Dançar com essas perspectivas me faz pensar que meu corpo é visitado por todos os que me contemplam. Passo a ser reflexo de todos os corpos que participam da dança de minha vida. Público e eu dançamos em sincronia estabelecendo diálogos silenciosos.

Metodologia de ensino-construção: Movimento enquanto busca particular
Atualmente são muitos os caminhos que apontam para a construção da dança particular do bailarino contemporâneo, todos partindo de princípios comuns que se nutrem de técnicas e sistemas criados por vários pesquisadores de movimento corporal reconhecidos em todo o mundo como Von Laban na Alemanha, criador da dança-teatro, dentre outros.
Quando um autodidata em dança passa a conhecer várias técnicas de codificação do movimento (Balé Clássico, Dança Moderna, afro, tradicional, entre outros), é inevitável: ele entrará em crise artística. Antes de ter acesso a técnicas, a dança do autodidata é construída a partir do pouco que se captou do mundo, estabelecendo um trabalho bem mais artesanal no sentido de fazer esse "pouco" render infinitamente. O acesso a muita informação técnica possibilita o encontro com os códigos universais de dança; conscientiza que são poucos os inventores e muitos os que aderem a invenções prontas. Ao entrar em estúdio para criar uma coreografia, a impressão que se tem é que desapareceu a “criatividade intuitiva” para que apenas haja uma reutilização artificial de seqüências coreográficas aprendidas em aula. A princípio, a necessidade de mostrar o que foi aprendido supera o antigo desejo de "criar por conta própria", e quanto a isso não há outro caminho senão o de esbanjar todas essa bagagens até que novamente se esgotem. O que acontece em seguida é um novo esvaziamento, uma ânsia em ser autêntico mantendo a consciência de que se é herdeiro de todo um processo outrora iniciado.
Falar de minha experiência particular no Colégio de Dança do Ceará e de minhas recentes atuações na Escola de Dança do Balé Baião é falar de descobertas que reverberam no trabalho que desenvolvo enquanto criador e artista-docente não somente em Itapipoca, mas na região e estado, experiências que me fizeram perceber o quanto é fundamental proporcionar ao aluno-pesquisador logo em seu primeiro contato com a dança o acesso a si mesmo, a seu corpo enquanto potencial sensível, afetivo e criativo.
Dentro dessa metodologia contextualizada, inserida na realidade concreta do corpo do adolescente, deve-se dar condições para que ele conheça o que já foi criado e nisso enriqueça seu acervo de conhecimento em dança. Logo após é preciso que se questione sobre a dança buscada pelo aluno; que dança se quer construir? Este será o insulto que provocará rompimentos com tudo o que fora absorvido anteriormente, e por certo fará nascer uma verdade individual que deixará evidente a beleza e a dignidade de um corpo falando de si mesmo, compartilhando suas especificidades com cada pessoa que faz o todo do público.
A dança do Balé Baião é resultado da fusão das danças particulares de cada bailarino da Cia. No decorrer do processo de formação dos bailarinos foram se definindo aptidões de movimento a partir de "facilidades" que foram descobertas individualmente em desafios lançados nas aulas. Essas facilidades foram acolhidas não como definição de estilo, mas como pressupostos para se investigar e possivelmente construir algo. Esse "fácil" na dança apontado pela Cia não significa conformismo diante do que se sabe fazer, e sim uma "base matriz" que vai se complexificando no exercício da repetição e de quebra súbita do movimento.
Cada bailarino do Balé Baião procura ter a consciência de que não há "dança definitiva" por não existir "dança acabada"; sempre há problemas a se resolver no movimento e uma constante insatisfação que motiva para uma nova tentativa. Viver é fundamentalmente experimentar!
A dança de Cia apresenta-se, pois, como inacabada por estar sempre se construindo. Por mais que cada solista revele uma extrema segurança e objetividade na execução do gesto, sempre existe embutida neste uma flexibilidade disposta a repensar e reformular esse movimento a partir de novos anseios e focos emergentes.

Movimento enquanto construção conjunta

Em se tratando de improvisar com o outro estabelecendo troca de sinergia no ato de dar e receber movimento, se faz necessário antes de qualquer coisa uma profunda intimidade com a pessoa que se propõe a ser parceira da criação. Uma companhia de dança, no caso do Balé Baião que existe há 15 anos com um elenco permanente de 10 anos, dificilmente deixará de construir uma trajetória de convívio e companheirismo perpassando as fronteiras do profissionalismo.
A experiência de grupo permanente, de estar em contato constante com aqueles corpos, de conhecê-los apuradamente, possibilita segurança mesmo diante das incertezas que acompanha qualquer improvisação. Conhecer o parceiro, suas potencialidades e limitações, é garantir uma confortável entrada e saída de movimento, um diálogo claro com a "fala corporal" do outro sem bloqueios físicos e psicológicos.
Os membros da Cia Balé Baião antes de serem parceiros de trabalho são vizinhos, moram na mesma rua e bairro, a maioria se conhece desde a infância e adolescência, são amigos confidentes que se encontram todos os dias, independente de ter ou não aula de dança. Existe entre eles uma cumplicidade que influencia inevitavelmente na criação coletiva do movimento da Cia. A afeição que existe entre todos gera uma dança acolhedora e tolerante, uma ação de escuta e resposta diante do que está sendo perguntado pelo corpo do outro no momento mais oportuno.
A convivência de seis anos tornou perceptíveis as "diferenças" que fazem de cada bailarino da Cia pessoas de personalidades singulares. Paralelo a isso ficou evidente o que há de mais comum entre todos, tanto no que se refere a condições físicas, reações psicológicas e principalmente na qualidade de movimentação. Hoje se percebe claramente na Cia, corpos que buscam conservar suas especificidades, mas que manifestam "sincronias conscientes" de gestos e movimentos que parecem fazer de todos um só corpo e uma só expressão com equidade.
No decorrer dos anos, muitos jogos e exercícios foram se codificando à proporção que foram vivenciados pela Cia. São comandos que apressam o processo de descoberta e construção do movimento de qualquer pessoa que deseje começar a dançar. Fui percebendo que é possível criar uma unidade móvel nos bailarinos a partir da diversidade de corpos e bailados que se apresentam em nossa escola de dança. E o melhor de tudo, é que não precisa de seis ou doze anos para isso; existem formas de adiantar a chamada formação do aluno de dança, no nosso caso, alunos adolescentes entre 14 e 20 anos de idade.
A linguagem desenvolvida por uma companhia de dança é sua verdade exclusiva. O Balé Baião consegue hoje repassar sua verdade não somente pelos espetáculos que produz, mas, sobretudo, através do sistema de ensino iniciado em julho de 2004 na escola que fundou. Adolescentes que nunca pensaram em dançar e outros que sempre quiseram isso, mas não sabiam como começar, estão criando individualmente e em grupo a dança contemporânea de Itapipoca sob orientação dos bailarinos da Cia. Os professores de dança se utilizam de exercícios próprios do Balé Baião nas aulas de consciência e expressão do corpo, contato-improvisação e composição coreográfica.
A dança do Balé Baião, algo que antes parecia impossível de ser executada por outras pessoas, está sendo vivenciada com vigor por novas gerações de bailarinos, cúmplices de uma dança que antes de tudo passou a significar agrupamento, integração de pessoas que querem produzir profissionalmente nutridas pela paixão, pela vida em grupo. Não dá para compreender dança coletiva ou criação conjunta de movimento corporal se existe discórdia e inimizade entre bailarinos de uma mesma companhia. A dança e o corpo não mentem jamais... É fundamental que o "bailarino tal" esteja muito bem com todo o "corpo de baile" para que consiga ser pleno na execução de seu movimento, e nisso possa ser um só corpo com os outros na sincronia das diferenças. Antes do ensino da dança é necessária a fomentação de uma consciência de grupo, de vivências que valorizem a construção de um senso humanitário centrado na tolerância e na cumplicidade.

Do Particular para o conjunto

Não existem "receitas" ou exercícios padrões que irão "moldar" um bailarino. Depois que passei a conhecer jogos de contato-improvisação, pude entender que podia fundir intuição e técnica para dirigir minha dança particular e conseqüentemente para preparar tecnicamente o corpo de baile da Cia Balé Baião. Logo após alguns anos, repetindo os mesmos exercícios de criação de movimento repassados no Colégio de Dança do Ceará, comecei a desenvolver exercícios próprios que vieram corresponder às atuais necessidades estéticas da Companhia. São propostas de vivências que podem contribuir com algumas etapas básicas de formação do bailarino-criador-intérprete, tais como:

• 1a etapa: Conscientização do corpo e de sua expressividade;
• 2a etapa: Níveis corporais (planos verticais e horizontais);
• 3a etapa: Tempo do Movimento;
• 4a etapa: Direções (paralelismos e oposições);
• 5a etapa: Contenção e expansão do corpo no espaço;
• 6a etapa: Estados corporais: o cênico na imobilidade;
• 7a etapa: Sincronia e quebra de sincronia;
• 8a etapa: Interação com objetos cênicos;
• 9a etapa: Interação com outros bailarinos:
Ø    Sem olhar e sem toque
Ø    Com olhar e sem toque
Ø    Com olhar e com toque
Ø    Conduções pelo contato direto e indireto
Ø    Divisão de peso
Ø    Aproximações e distanciamentos
Ø    Sustentações
• 10a etapa: Composição poética e filosófica de dança;
                           Da presença à ausência de movimento
Entendo que a primeira compreensão de dança do bailarino é intuitiva. Para que haja autonomia criativa do intérprete, é necessário que ele tenha autoconhecimento de seu corpo antecedendo a qualquer aprendizado acadêmico.
Uma opção que muito pode contribuir nesse processo é tomar paralelo o exercício do ensino de técnicas sistemáticas de dança, principalmente se a turma é formada por adolescentes. Estes precisam de uma dinamização que apresse o processo de construção da dança almejada, afinal, práticas de dança deveriam ser iniciadas na infância trabalhando principalmente a espontaneidade da criança. São raras as escolas de dança no interior do estado; no geral, os adolescentes precisam "correr atrás" para recuperar o tempo perdido. Itapipoca, Trairí, Paracuru, Paraipaba, Tejuçuoca e Itapajé (Vale do Curu e Litoral Oeste do estado) conhecem muito bem essa realidade.
A Cia Balé Baião quer suscitar em sua escola bailarinos que tenham autonomia e personalidade no dançar. Sabe-se que somente depois de alguns anos de experiência com dança é que se chega a tal medida, porém, já são visíveis casos de adolescentes da Escola Balé Baião que pela tendência de criar estão surpreendendo com trabalhos autorais produzidos em pouco tempo de experiência, apresentando precocemente consistência de movimento e de direção coreográfica. Constatei que o alicerce de tudo isso é a consciência do corpo e da expressividade que esses adolescentes estão desenvolvendo nas aulas de criação particular do movimento, somados às aulas de Balé Clássico e Dança Moderna. Nisso se ganha maior amplitude de possibilidades corporais.
As aulas de conscientização do corpo partem das seguintes propostas de vivências:
• Ausência total de movimento do corpo seja no chão ou em pé (trabalho com as duas possibilidades);
• Ampliação do olhar através de direcionamento para o foco da frente, focos laterais, cima, baixo e costas. Fechar olhos e visualizar uma cor (a primeira que vier);
• Respiração ativada somente pelo nariz, somente pela boca, integrando nariz e boca, prender e liberar fôlego, respirar por todos os poros, normalizar;
• Percepção do corpo sem movimento (visualização) e ou com movimentação crescente de todas as partes, dos pés até a cabeça e ou da cabeça aos pés, da periferia ao centro do corpo e do centro à periferia. Esses trabalhos podem ser realizados com o corpo deitado ou de pé. Se o corpo está no chão, a movimentação deve ser horizontal, tudo pesará e se arrastará sem elevação de periféricos (braços, pernas, cabeça) e nem centro do corpo (tronco). Trazer à tona a lei da gravidade.
    Se o corpo está de pé, explorar direções paralelas e opostas do movimento em sustentações e declínios dos periféricos, contrações e descontrações no centro.
• Locomoções a partir de pequenos e grandes apoios presentes em todo o corpo. Elevação de periféricos e centro se necessário (verticalizações de braços, pernas, bacia);
• Utilização de níveis corporais:
Ø  Corpo deitado: Busca do lado direito e esquerdo, rolamento para troca de lado, elevação do tronco usando os braços como apoio de sustentação (cambrê), utilização de todos os possíveis apoios e ísquios para  sentar, apoio somente no bumbum para elevar periféricos (equilibrar e desequilibrar), utilizar-se de quatro apoios (braços e pernas) e de dois apoios (pernas com flexão de joelhos e tronco caído), desenrolar e enrolar o tronco de baixo para cima, de cima para baixo, pelos lados direito e esquerdo, braços ativados pelos cotovelos em ondulação, elevação e declínio, lançamentos e "enganchos", um braço congela e o outro continua a se mover, oposições e paralelismos, cabeça e tronco acompanhando ou não a expansão e contenção dos braços. Ocupação do espaço pela condução dos periféricos e centro do corpo. Equilíbrios, desequilíbrios, giros, saltos e rolamentos de todo o corpo em interação com o espaço. Contenção decrescente do movimento até chegar a pulsações visíveis e invisíveis; estado de dança na imobilidade.
Ø  Corpo de pé: Cada parte do corpo move-se a partir das necessidades momentâneas, começando pela cabeça e encerrando nos pés. Após tal parte se movimentar que haja uma pausa para que a parte vizinha comece a mexer. Depois de todas as partes trabalhadas com suas respectivas pausas, inicia-se uma emenda de movimentação livre onde cada parte do corpo vai provocar movimento na sua parte vizinha integrando cabeça, tronco e membros. Escolha de partes do corpo que vão congelar em planos opostos, sejam verticais ou horizontais, enquanto que as outras partes se movimentarão em integração ou não a elas. Enganchos de movimento que provoquem expansões; ocupações do espaço mínimo e do máximo; paradas bruscas e paradas decrescentes do movimento (máximo ao mínimo) e o inverso; pulsações visíveis e invisíveis: estado de dança na imobilidade (paralisação com pulsações discretas).

Da Sincronia à Quebra
Hoje acredito que a dança precisa nascer em plena apresentação. Ela é fecundada em aula pela prática permanente de técnicas sistemáticas, porém, só ganha corpo na libertação do gesto aos olhos de todos, nos palcos da vida.
A dança casual ou o movimento que surge em coincidência com outro movimento de outro bailarino, e que por acaso cria uma harmonia plástica nos convencendo de que aquilo foi ensaiado e não uma improvisação é o que chamo de sincronia quebrada ou diálogos improvisados.
A partir de agosto de 2004 venho catalogando exercícios que possibilitam o encontro e o desencontro proposital com essa sincronia. Parto sempre da idéia de que é preciso antes de tudo uma liberação dirigida do movimento expressivo. Sempre procuro fragmentar o máximo possível as possibilidades de mobilização do corpo do bailarino-criador para que ele contemple de forma processual as suas descobertas específicas e sobretudo suas dificuldades naturais, sendo impulsionado a investigar e construir sua performance à luz de suas facilidades e desafios. Mostro em seguida algumas etapas que trabalham essas perspectivas:

Variações e releituras
• Repasse de uma variação ou frase coreográfica que valorize o que pretendo explorar de específico naquela aula. Ex: braços em nível alto, contato com o chão, movimentos do cotidiano, outros.
Em seguida a variação é executada em tempos diferentes (calmaria, explosão...), em novas marcações no espaço (bailarinos em círculo, direções opostas, níveis diversos do corpo...), minimizando e maximizando a movimentação.
Depois, ocupando todos os espaços da sala em direções variadas, os bailarinos serão convidados a fazer releituras particulares da variação, criando novos traços espaciais, movimentos e gestos próprios, sem fugir da matriz inicial. A idéia é que ele possa usar a coreografia repassada como base para criar uma nova coreografia, mas que conserve sua essência (sua idéia central), mantenha sua velocidade, seu fluxo, direções, níveis e focos. Após repetidas tentativas de releitura, todos os bailarinos serão dirigidos a expôr suas performances em três etapas:
1.    Cada um mostra sua releitura para todos apreciarem;
2.    Todos mostram suas performances ao mesmo tempo para que perceba-se em meio às diferenças onde podem estar as sincronias;
3.    O professor direciona a turma para que abram um círculo. No centro os bailarinos mostrarão em duplas suas releituras para que se perceba com mais profundidade onde estão os contrastes, sincronias, encontros e desencontros casuais. A partir daí o professor pode explorar novos comandos para que as duplas estabeleçam diálogos criativos, tendo como base seus solos: trabalhar diferentes tempos, velocidades, enquanto um dos bailarinos congela o outro move-se, inversão de papeis, dentre outras possibilidades de comandos que podem surgir.

  Matrizes ou Estados corporais
• Definir uma posição corporal em que todos devem ficar. Essa posição não deve ser "petrificada" como uma estátua; precisa de respiração natural e de pulsações mínimas. Cada bailarino-criador começa a improvisar partindo dos periféricos de forma econômica e tranqüila, avançando progressivamente com a liberação de movimento. Ao mesmo tempo em que se foge da matriz (posição-base) retorna-se a ela como um refrão a ser repetido, deixando sempre novas possibilidades de movimento ganharem forma no espaço mínimo dado pela matriz. À proporção que há uma evolução do movimento, novas matrizes ou posições-base podem surgir na tentativa de valorizar outros níveis corporais. O bailarino criador fica transitando entre uma matriz e outra (três no máximo) desenvolvendo percursos conscientes entre elas. De três retorna-se a duas matrizes, de duas a uma e nela finda-se o jogo do jeito que foi iniciado.

Seguindo o outro por caminhos opostos
• A idéia é que haja um encontro e um desencontro com a variação (coreografia) dançada pelo parceiro. Enquanto “seguidor ativo” percebo o que o outro está me dando de movimento e tento repeti-lo de forma pessoal, estando e ao mesmo tempo não estando em sincronia com a coreografia dada. De forma súbita, o bailarino que dava movimento pra mim, agora tenta me acompanhar da mesma maneira que fiz antes com ele. Tendo mais bailarinos no jogo, troca-se de parceiro o tempo inteiro, todos assumindo os papéis de dar e receber movimento sendo ativos e receptores ao mesmo tempo. O exercício pede que não haja troca de olhar entre bailarinos para que a visão aconteça discretamente por outras vias e nisso se desenvolva um olhar indireto, uma visão de cena que acontece via percepção sensitiva do outro.
Não tocar no parceiro também é outro comando que suscita uma busca a mais dos bailarinos nesse jogo. Criam-se outros fios de ligação que não são palpáveis, como se cada bailarino permanecesse no solo de seu mundo particular e rompesse com ele penetrando no mundo do parceiro. Em seguida entra o olhar, o toque diversificado, conduções, sustentações, sempre estabelecendo aproximações e fugas do parceiro.

Desenhos Espaciais
Encontros fotográficos:
A meta desse trabalho é criar imagens corporais no espaço mínimo e máximo, a partir de ligações diretas e indiretas entre os corpos dos bailarinos.
A utilização dos periféricos (braços, pernas...) acontecerá por necessidade de locomoção, ocupação e desocupação dos espaços e não por “enfeite” desnecessário. Será fundamental que o corpo seja usado em sua totalidade, porém, sem recorrer a movimentos artificiais que geralmente surgem em improvisações inconscientes.
Os bailarinos procurarão uns aos outros tentando ficar do lado do parceiro, na frente, atrás, de costas, apenas para ficar perto do outro. Para achar um corpo é necessário que haja locomoções correndo ou utilizando-se de apoios no chão. Algumas matrizes podem ser adotadas para funcionarem como ponto final do movimento. O ato de correr ou de se locomover pelo chão será adotado como movimentação codificada do jogo; para ficar perto de alguém em pé ou deitado serão "pontos finais" das frases ou “matrizes” que sempre surgirão para criar sincronia nas quebras.
Após congelar em uma matriz, o bailarino decide para onde ir, de que forma se locomoverá e de que maneira vai parar ao lado do outro para recomeçar tudo novamente, de forma crescente e em seguida decrescente. Nesse exercício, desenhos inesperados são construídos, tais como quadrados, círculos, asteriscos, filas, letras, (S, L, T ...), dentre outros.
Para que o bailarino consiga realizar esse jogo é básico que ele tenha noção de desenho, decisão objetiva na hora de se locomover para mudar de ângulo, agilidade, visão total do que está acontecendo no espaço, habilidade com o chão (apoios, amortecedores...) e sem dúvida, entrosamento com os parceiros de dança.
As cinco ações naturais
Os bailarinos deverão estar espalhados no espaço da sala em direções diferenciadas. Todos deverão vivenciar ao mesmo tempo as cinco ações ou atitudes mais comuns dos seres humanos: andar, correr, parar, sentar e deitar. Cada um deverá compor formas variadas de executar cada ação em tempo determinado pelo professor. Na próxima etapa os bailarinos terão autonomia para escolher as ações que desejar para executar, uma após outra, em tempos e espaços diversos, desenvolvendo uma partitura harmônica a partir de escolhas. Todos estarão em cena executando ações diferentes que subitamente se harmonizarão conforme escolhas comuns que sem planejamento serão feitas. De repente três bailarinos poderão sentar ao mesmo tempo, enquanto que dois estarão correndo e quatro estarão deitando no chão, entre outros exemplos. A seguir, o professor conduzirá os bailarinos para a vivencia das cinco ações em quatro momentos específicos:
  1. As cinco ações serão vividas a partir de temas relacionados a sensações, exemplo: correr, deitar, sentar, parar e andar com o medo, com o sentimento de solidão, de espera, com desesperança, com determinação e alegria, dentre outros temas, sempre mantendo a economia dos gestos, a intensidade do movimento e a crença na verdade que estará se materializando no corpo.
  2. O bailarino vivenciará as cinco ações em interação com os outros bailarinos através da aproximação de alguém e por conseqüência do contato com alguém. Exemplo: três bailarinos sentaram perto um do outro ao mesmo tempo por decisão consciente. Em seguida um deles encosta a cabeça no ombro do vizinho, enquanto que o outro o abraça. Resultado: imagem de três pessoas se amparando com ternura, dentre outros exemplos.
  3. Os bailarinos vivenciarão as cinco ações em interação consciente uns com os outros, a partir de temas lançados pelo professor: medo, solidão, fúria, indiferença, solidariedade, amparo, compaixão, dentre outros.
  4. Os bailarinos vivenciarão dentro do desenho de um quadrado com cinco pontos de localização, as cinco ações com os sentimentos que optarem, sempre trocando de lugar e transitando entre uma pessoa e outra, Os pontos deverão ser quatro nas extremidades e um ponto central. Em cada ponto de acordo com as trocas de lugares podem ter duas pessoas, uma ou todas ao mesmo tempo. Não haverá limite de pessoas para cada ponto, como também não será erro se determinado lugar ficar vazio (Esse vácuo pode ser extremamente cênico). Enquanto os bailarinos trocam de lugar, mudam ações, velocidades, ou encontram de súbito alguém e se acoplam, serão automaticamente formadas “imagens cênicas” que ao mesmo tempo petrificarão nas pausas e se movimentarão com intensidades diversificadas, gerando infinitas opções de “olhares” na platéia.
Interação com objetos
O objeto escolhido para ser trabalhado em um espetáculo de dança deixa de ser meramente utilitário para tornar-se objeto de cena, ou seja, parte integrante do conflito e da estética do trabalho exposto.
É preciso que o bailarino-criador tenha coerência na escolha do objeto cênico que vai utilizar em sua performance. Ele deve ser na dança extensão poética do movimento corporal, ampliação, prolongamento da presença cênica do bailarino. O objeto escolhido precisa corresponder aos anseios do coreógrafo no que se refere à concepção ou à idéia central do trabalho que quer desenvolver. De repente será preciso apenas um objeto cênico e nada mais. Lidar com o necessário em cena é garantir um trabalho essencialmente poético, despojado e repleto de vácuos a serem preenchidos pela platéia, que passa a ser dona do trabalho coreográfico à proporção que ele é apresentado ou ofertado no palco.
Se existe objeto em cena é necessário estudar e compor o seu começo, meio e fim, definir o objetivo concreto que ele terá em cena, em que momento vai aparecer, garantir sua aparição discreta e seu desaparecimento súbito, que conflito cênico ou que "plástica corporal" ele ocasionará no acoplamento com os bailarinos, com o espaço da cena e da platéia que o percebe e até mesmo toca-o. Outra questão fundamental nesse trabalho com objetos é possibilitar que não haja agressão ou violência dos mesmos quando usados na tentativa de forçá-los a serem outra coisa. Os objetos são o que são e devem ser “usados” da maneira que é possível usá-los. A partir do momento que me utilizo do objeto com a pretensão de demonstrar “domínio de malabares” não estou fazendo dança, e sim artes circenses.
Procurei dividir a pesquisa de interação com objetos em duas etapas básicas:
Objeto Cênico em solo
Ø Reconhecimento do objeto - O bailarino-pesquisador deve estudar pelo olho e pelo toque a estrutura, o tamanho, o peso, as possíveis entradas e saídas que o objeto apresenta, bem como suas fragilidades e resistência.
Ø Mudança de plano do objeto + mudança de plano do corpo - O objeto deverá ser colocado em outras posições (deitado, de lado, de cabeça para baixo...) enquanto que o bailarino tentará imitar com seu corpo as mesmas, se aproximando e se distanciando dele, criando movimentos de ligação que favoreçam a troca de posição do objeto e conseqüentemente entre o fluxo de movimento em ocupação do espaço.
Ø Entrar e sair do objeto - O bailarino poderá ir ao encontro do objeto para encaixar-se nele ou trará o objeto para seu corpo onde se acoplará. A cada entrada no objeto (sentar, ficar de pé, por cima dele, colocá-lo na cabeça, prendê-lo entre cabeça e ombro etc.) é importante fixar a imagem congelando. Pouco a pouco, dentro dessa imagem desenhada (matriz), devem-se liberar pequenos e grandes movimentos, sempre a partir do limite e das possibilidades que o objeto oferece. O momento de êxtase do jogo é quando o fluxo de movimento rompe com as imagens congeladas proporcionando continuidade, abandonos e retornos ao objeto em ocupação consciente do espaço.
Ø Desenhar o espaço com objetos - cada bailarino vai precisar estar vestido com uma blusa grande de algodão. Pegando com as duas mãos a parte inferior da blusa, cria-se um depósito onde ficarão guardados objetos pequenos (padronizar: caixas de fósforos, ou búzios, miniaturas de brinquedo, batons, etc). O jogo começa com a retirada tranqüila desses objetos da blusa. O bailarino vai espalhar esses objetos em todo o espaço preenchendo todas as lacunas. No segundo momento ele recolherá esses objetos de forma dinâmica levando-os novamente para o depósito da blusa. Tanto o ato de espalhar como o de guardar os objetos deve provocar nos bailarinos um ágil trabalho de chão (apoios e amortecedores dos periféricos, articulações, giros, saltos, equilíbrios e desequilíbrios) diversificando o tempo, o tamanho, a força e o peso do movimento desenvolvido.

Objeto Cênico em grupo
Ø  Formação de desenhos espaciais com objetos:
o grupo de bailarinos vai montar desenhos diversos no chão a partir da interação dos objetos. Para a formação desses desenhos, os bailarinos terão que encontrar uma dinâmica de locomoção no espaço utilizando-se dos níveis baixo, médio e alto, sempre buscando ter visão do "todo" e das "partes" para que não haja choques e colisões entre corpos e objetos. O desenho criado será resultado da inspiração e escolha do bailarino diante do objeto que foi deixado no chão. Ele deverá traçar o próximo risco do desenho com seu objeto e o bailarino seguindo fará o mesmo. A cada desenho construído o grupo de bailarinos deverá congelar em posições corporais diversas contemplando a obra. Subitamente, um dos bailarinos resolverá tirar seu objeto do chão quebrando com o desenho para construir outro. Os bailarinos escolherão acompanhá-lo ou não em novos trajetos, novos desenhos com objetos e novos quadros vivos com a mobilidade e imobilidade dos corpos em ação.
Ø  Entregas e recebimentos de objetos:
Esse trabalho deverá ser feito inicialmente em duplas. Os dois bailarinos estarão com objetos iguais (bacias, bancos etc) e próximos um do outro (de lado, frente, costas...). A idéia é que os bailarinos se movam em interação com os objetos e em seguida encontrem um momento oportuno para trocá-los. Esse momento de troca terá que ser recheado de pausas sinalizando e espera pelo outro, e de avanços decididos no intuito de garantir a entrega segura dos objetos. Esse exercício pode ser desenvolvido também com a utilização de apenas um objeto, seguindo a mesma seqüência de entregas e recebimentos. O bailarino que estiver com o objeto estará interagindo com ele, enquanto que o outro se moverá livremente. À proporção que vão estabelecendo a inversão de papéis, cria-se uma codificação de movimentos nos corpos pelo contato com o objeto. O movimento manifestado pelos dois será resultado dessa repetição e dessa interação simultânea.
O segundo momento desse trabalho é juntar um grupo maior de bailarinos para desenvolver a trajetória anterior. Desta vez, a interação e a agilidade deverão ser dobradas para que haja harmonia e sincronia grupal na execução das trocas de objeto e nas locomoções pelo espaço. Em primeiro plano tudo deve ser feito com calma para que se estudem caminhos e estratégias de troca. Conseqüentemente a velocidade deve se acentuar dentro de um fluxo contínuo até se construir um clímax e um retorno a calmaria.
Eis alguns objetos cênicos utilizados em aula pela Cia Balé Baião e por sua escola de dança:
Ø Bacias, lençóis, bastões, cadeiras, bancos, pedras, búzios, malas, imagens de santos populares, giz, elásticos, bolas, sinos, espelhos, chinelos, roupas, lamparinas, brinquedos, DVDs, folhas de papel ofício, caixas de fósforos, travesseiros, esteiras, cordas, barbante, sacos de algodão, miniaturas dentre outros.

Composição Poética e Filosófica da Dança
Esquematizar um roteiro coreográfico para a dança desenvolvida no Balé Baião é um exercício de leitura que principia no entendimento do corpo e do movimento que se quer trabalhar dentro do espetáculo (linguagem corporal), estende-se no aprofundamento filosófico e poético desse corpo e desse movimento (concepção do tema ou assunto norteador), e tem sua culminância na fusão desses dois aspectos, seguindo pelo processo de experimentação e definição de cenas em constante tentativa de descoberta coreográfica que requer repetição, flexibilidade e, sobretudo, generosidade dos bailarinos-criadores  no sentido de entrega ao trabalho, assumindo principalmente as dificuldades de adesão às técnicas repassadas. Generosidade, entrega e adesão são exercícios que sempre exigem do aluno-bailarino determinação,  paciência e perseverança.
Independente da linguagem a se utilizar ou do tema específico a ser discutido no espetáculo, o Balé Baião sempre quer falar do momento presente da humanidade, dos conflitos, ânsias, buscas e achados do corpo contemporâneo, tendo como pano de fundo a vida e a diversidade de contextos que fazem o planeta terra.
Esse pensamento acaba me deixando à vontade para criar sem prender-me a "receitas acabadas" de composição, bem como me desprende de temas de cunhos diversos. Preciso estar livre e lúcido para dançar sempre de outro jeito, para falar de outra coisa, para não falar de nada, para estar em outro lugar, para ser outro sempre. Creio que a lógica da vida (que antecede à dança) é buscar e achar incessantemente; no dia em que tudo tiver sido achado e não existir mais buscas, a vida deixará de pulsar, o corpo não precisará mais caminhar e tão pouco dançar.
Em resumo, eis algumas pistas que facilitam o processo de composição coreográfica:
Ø  Definição do que se quer falar (ideia central) e da linha de movimentação corporal (estética do espetáculo);
Ø  Aprofundamento teórico da idéia central do espetáculo (livros, vídeos, entrevistas etc.);
Ø  Pesquisa de campo (visitações, registros em fotografia e vídeo, questionários...);
Ø  Em estúdio: Experimentações e confecção das cenas ou das partes que farão o roteiro do espetáculo (busca de comandos que capturem os corpos nas cenas desejadas, marcações sincronizadas e livres para improvisar,  utilização de objetos cênicos...);
Ø  Definição da trilha sonora apropriada para cada cena do espetáculo;
Ø  Definição de figurinos apropriados (de preferência que valorizem as diferenças de cada corpo do elenco, sem padronização de modelo);
Ø  Ensaios fechados e interativos (avaliações abertas);

Gerson Moreno

Biografia de Gerson Moreno

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Histórias de meninices, militâncias e Pré-danças

Antes de tudo os meus pais... Moradores das serras de nossa cidade. Filhos de agricultores, jovens agricultores... Meu pai (José Américo) brincante de “Dramas Antigos” e Reisado, minha mãe (Maria Socorro) doméstica.

Desceram as serras com suas famílias em busca das prometidas melhorias que a cidade grande poderia oferecer. Meu pai foi morar no Seminário Diocesano para ser Padre, minha mãe também... Para cozinhar pro Bispo. Lá se conheceram... Namoro às escondidas. Resolveram casar... O Bispo muito amigo dos dois lhes deu um terreno. Casaram e me fizeram... Bairro Coqueiro, próximo ao Violete e Cruzeiro, periferia da cidade.

Nasci em Quatro de Julho as 18h30m no antigo hospital de Itapipoca. Primeiro filho!

Diziam que parecia mais com minha mãe e com os parentes dela: moreno, olhos castanhos escuros, cabelos pretos.

Estava com cinco anos de idade... Paredes riscadas: pássaros e igrejas feitos por mim. Todos se admiravam! “Esse menino vai ser desenhista...” Escutei isso durante toda a infância da boca das pessoas. Meu pai fazia desenhos pra eu ver e tinha livros grossos guardados no guarda-roupa. Me fascinava ver meu pai desenhar ali ao vivo: pessoas, bichos... Queria imitá-lo. Os livros guardados eram pra mim misteriosos. Abria escondido o guarda-roupa para ver as figuras... José Américo tinha muito ciúmes deles. Acabei com cada livro pouco a pouco... Queria as fotos, recortei cada uma, colei em algum lugar. No final meu pai sempre entendia. Nada de brigar por causa disso.

Todo final de semana estava no Bairro Picos (Pé de Serra de Itapipoca) para visitar os meus avós, tios e primos maternos. Um paraíso de se ver e degustar! Roçados onde ia plantar e colher com um monte de meninos e meninas, riachos e bicas onde tomava banho e escorregava nas pedras, plantas e árvores diversas onde tirava fruta do pé (só vivia ralado de cair dos cantos)... Barro de louça (argila) era meu brinquedo preferido nos Picos. Vivia a fazer pequenas esculturas de pessoas e santos... Horas e horas a me lambuzar com lama. Tinha muito barro bom nas “grotas”. Só ficava meio frustrado porque não conseguia levar nenhuma das imagens pra casa. Elas sempre quebravam. Tentei secá-las várias vezes, botava no fogareiro... Assim mesmo rachavam. Parecia que não podia tê-las... De vez em quando deixava algumas delas em lugares lindos, sozinhas. Pra mim eram sagradas... Meu pai era também uma grande influência religiosa pra mim, por isso os santos, por isso altares em meio a matos, altares de pedra com imagens de barro. Sempre meu pai me levava a missas... Começaram a dizer que eu iria ser padre. Isso de alguma forma deixava meu pai e os parentes dele (extremamente católicos) muito felizes, como se eu estivesse de alguma forma com a missão de ser o que meu pai não conseguiu. Nunca me senti forçado a isso, mas essa ideia chegava a mim, e eu apreciava isso. As imagens de Santos eram lindas, as mãos delicadas, olhares ternos... Canções que me faziam imaginar o céu. Tudo aquilo me instigava a imaginação. Lembro com carinho de uma cena surreal: Eu, um menininho entre nove e dez anos no calçadão da Catedral, com um caderninho na mão desenhando de lápis o rosto do Padre Bezerra, ele sentado à minha frente numa cadeira a esperar minha obra. Padre Bezerra foi um grande amigo de meu Pai. Já faleceu... Temos uma rua em Itapipoca com o nome dele (homenagem). Há tempos me pedia para desenhar o rosto dele... Nunca tinha feito isso. Só desenhava Santos. Terminado o desenho o agradecimento do Padre, me deu alguns cruzeiros... Quanta felicidade!

Além do fascínio por Santos, por barro e lápis de cor, sempre gostei e brinquei com bonecas. Tinha entre 11 e 13 anos... Muitas bonecas na sala de casa para quem quisesse ver. Meus pais nunca me repreenderam e os próprios vizinhos nunca se meteram nisso. Na época eu achava tudo extremamente “natural”. Não existia na minha cabeça a reflexão ou o juízo de valor par determinar que existissem coisas de menino e coisas de menina. Me interessava ter diversas bonecas, bonecos, bichos, construir cidades com casas de madeira (pegava pedaços de madeira da serraria de meu pai e eu mesmo fazia as casas da cidade). Todo dia eu tinha o horário de montar a cidade e construir uma história. Tinha protagonistas e antagonistas com textos, falas e diálogos. Geralmente terminava a história com uma grande catástrofe que destruía tudo (inspirado em um desenho que vi na TV). Fazia essa cidade na sala, ficava no meio dela... Visitas chegavam, achavam bonito.

Eu tinha uma Tia chamada Lélé nos Picos (Já faleceu). Ela era rezadeira e fazia bonecas de pano como ninguém. Eu era seu principal fã... Sempre ela me fornecia alguma boneca interessante. Todo ano no dia de São Pedro ela organizava um Terço na comunidade. A atração do terço era um cenário que ela fazia na parede de sua casa de taipa repleto de bonecas de pano vestidas de anjo, ao redor da imagem de São Pedro. Pessoas de várias localidades da serra vinham para esse terço tradicionalmente. Eu não tirava os olhos de tudo aquilo... Perfeito pra mim: um santo e bonecas!

Nunca me esqueço de certa vez, época de Natal no bairro que morava, iam distribuir brinquedos para crianças... Fila enorme. Eu estava no meio ansioso... Ansioso para ganhar meu presente: uma boneca. Tinha duas opções de presentes: carrinho para menino e boneca para menina. Na minha cabeça estava certo que eu iria dizer quando chegasse à minha vez que eu queria a boneca e não o carro... Fui vendo que todos os meninos só levavam os carrinhos... Intimidei-me... Levei o carrinho muito triste para casa. Nunca brinquei com ele. Me confortava saber que quando eu chegasse em casa as minhas bonecas estavam me esperando. Algumas delas ganhei de primas, outras de minha Tia Lelé... Cheguei a roubar algumas delas, as mais exóticas. Pra mim elas tinham vida própria, conversavam entre elas quando eu não estava presente... Assistia muitos desenhos da Disney, dormia vendo TV na sala... Me interessava dar vida as bonecas, inventar histórias e mundos. Muitas dessas histórias iam pra os cadernos de desenho e paras revistinhas em quadrinhos que eu mesmo fazia (Tinha coleções imensas de revistas em quadrinhos... meu pai comprava). Aprendi a ler e escrever por causa das revistas em quadrinhos... A professora ajudava, mas as revistas tornavam isso mais prazeroso. Meu pai acompanhava esse processo, por isso sempre me fornecia revistas. Ele era esperto!

A TV também me inspirava a fazer shows em cima de uma mesa velha que ficava no quintal de uma vizinha nossa. Eu juntava várias crianças e ia me apresentar pra elas com imitações de cantores. Em seguida articulava a apresentação de todos... Programação, tempo, pedia aplausos para eles... O local era um quintal imenso, diversos cajueiros, galinhas, porcos, flores, insetos... Hoje somente casas para alugar. Quando me lembro dessa mesa fico pensando que eu era mesmo uma criança pretensiosa.

Meu Pai passou a ser coordenador de pastorais socias da paróquia de nosso bairro (Violete). Ele cantava nas missas, animava grupos de jovens, organizava encontros e reuniões na comunidade, e o melhor de tudo pra mim: se apresentava com peças de teatro. Aquilo me encantava por demais! Foi tanta inspiração que aos 11 anos resolvi ser catequista do bairro. Ia sempre com meu pai que já tinha grande contato e influência na paróquia. Passei a participar de cursos e encontros produzidos pela Pastoral Catequética. Eu era o mais novo. Um menino no meio de adultos. Percebo que de alguma forma isso me fez amadurecer precocemente. Daí em diante passei a ter contato com muitas pessoas, fiz muitas amizades, aprendi a lidar com o ensino, com a partilha de conhecimentos... Aprendi a envolver pessoas, a motivá-las para ações de grupo. E o melhor de tudo, passei a fazer teatro na comunidade. Nesse período (década de 80), as pastorais tinham um compromisso acirrado com o social tendo como base a Teologia da Libertação de Leonardo Boff. As artes eram acolhidas como instrumentos de conscientização, luta e celebração da vida. Me interessava fazer arte para defender a vida e a justiça!

Foi através das pastorais que tive oportunidade de fazer minhas primeiras oficinas de expressão corporal, teatro do oprimido e colagem artística. Lembro como se fosse hoje, eu, garotinho de 16 anos, enviado para viajar sozinho a cidade de Canindé, a fim de participar do Curso de Inverno da ESPAC (Escola da Pastoral Catequética). Foram três idas, sempre em mês de Julho, sempre uma semana fora, tendo aulas de psicologias das idades, dinâmicas de grupo, análise de conjuntura, cultura popular brasileira, Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, composição literária, arte popular... A Igreja era outra! De fato formava para a vida... Foi nesse curso que assisti pela primeira vez a um espetáculo que unia teatro, dança e canto... Foi nesse curso que resolvi apresentar pela primeira vez um solo performático (não chamava assim...). Dizia ser uma expressão corporal... Minha inspiração era a cultura afro-brasileira (era 1988: ano dos 100 anos de libertação da escravatura no país). O solo era ao som de uma canção que trazia trechos do Navio Negreiro de Castro Alves. Desde então não parei mais... Interessava-me mostrar para as pessoas isso que eu gostava de fazer. Sentia-me pleno em me utilizar de meu corpo para fazer um tributo vivo a Raça Negra. Desde então promovi na Igreja do Violete várias coreografias afro dentro das missas... Dançava na Igreja ao som de tambores, levando oferendas a Zumbi dos Palmares, ao Deus de todas as cores e etnias, a Oxalá! Enquanto isso beatas a me perseguir, a nos perseguir, afinal já éramos um grupo de dança. Edileusa (minha prima) que até hoje está conosco na Cia Balé Baião foi uma das companheiras de dança nessa época dentre tantos outros.

Da Igreja passei a atuar em movimentos sociais e pastorais sócias, entre eles a Pastoral Urbana (que agregava representantes de várias entidades dos bairros da cidade para discutir desafios urbanos e tentar no coletivo resolvê-los), a Pastoral de Adolescentes e Crianças vinculada ao Movimento Nacional de Crianças e Adolescentes (onde o foco era a luta em defesa dos direitos das crianças e adolescentes), a Pastoral Operária (que agregava associações, sindicatos e operários das fábricas de Itapipoca para discutirem e lutarem por seus direitos) e o Movimento de Artistas da Caminhada (MARCA) articulado por Zé Vicente (cantor e compositor de renome nacional). O “MARCA” agregava grupos de dança e teatro que tinham em comum a produção de trabalhos artísticos voltados à “Caminhada”, ou seja, a defesa e luta pela cidadania e direitos humanos. Esse movimento ganhou inclusive proporções estaduais. Todo ano passamos a fazer um Encontro chamado “Aconchegão de arte-vida” que integrava grupos artísticos de todo o Litoral Oeste e Vale do Curu.

Zé Vicente foi a primeira pessoa que me disse que eu era artista, que eu deveria me assumir como artista... Até então me sentia bem mais um militante ou liderança comunitária que tinha dotes artísticos. Passei a me assumir artista da caminhada!

Por meio da Pastoral de Adolescentes e Crianças e do Movimento de Artistas da Caminhada iniciei vínculos afetivos com pessoas que até hoje fazem acontecer em nossa região ações pontuais em arte, especialmente em dança, entre eles o Moésio de Uruburetama e o Nenêm de Trairí.

Paralelo a tudo isso resolvi morar no Seminário Diocesano aos 18 anos, depois de ter passado uns três anos como seminarista externo.

Desejava ser Padre para assumir votos de compromisso pela causa do povo empobrecido... Inspirava-me em padres revolucionários da época, sacerdotes que se envolviam com bandeiras de lutas sociais, inclusive com os que se tornavam mártires, que morriam defendendo agricultores sem-terra... Era lindo saber desse tipo de morte... Queria morrer assim também. Acreditava que como Padre, dentro da estrutura de Igreja, poderia fazer acontecer muita coisa pela revolução da própria igreja... Passei a questioná-la instigado pelas próprias reflexões das pastorais sociais em torno do tradicionalismo histórico da Igreja. Não durei muito tempo no seminário... Interessava-me ensaiar peças de teatro, criar coreografias e desenhar enlouquecidamente... Cobraram-me disciplina para com as orações e agendas do seminário. Eu estava muito ausente por causa de ensaios e apresentações no bairro... Ser Igreja significava pra mim estar no meio do povo fazendo arte, romper com os muros do seminário... Resolvi depois de muitos “Retiros Individuais” sair do seminário, servir ao maior Artista do Universo: Deus, de outra maneira. Criar essa maneira.

Em parceria com dois amigos e companheiros de trabalho criamos a Fraternidade Esperança masculina, grupo de jovens consagrados à comunidade vinculado à Fraternidade Esperança de Crato-CE. Fui morar no meio do povo que eu amava: o povo do Bairro Violete. Alugamos uma casa e passamos a dividir a vida juntos como irmãos consagrados. Esse compromisso foi inclusive oficializado em uma Cerimônia linda na igreja do Violete onde fui entregue pelos meus pais no altar.

Algo no entanto me incomodava constantemente. Comecei a me sentir castrado e limitado as rotinas quase sempre utópicas da Igreja... Depois de um ano em contato direto com os moradores do Violete resolvi voltar para casa.

Tinha ânsia de me desfazer de “obrigações” e de frases como: “através disso vamos fazer isso”. Sentia que poderia ir mais além do que aquilo... Desejava fazer arte pela necessidade de fazê-la. A Igreja não mais me fascinava... O que queria era de fato criar e compartilhar disso. A Igreja estava me engessando apesar de tudo. Os tempos eram outros, a Igreja retrocedia... Portas se fechavam para Pastorais Sociais... A Teologia da Libertação estava sendo perseguida pelos chamados “carismáticos”. Leonardo Boff deixou de ser Frei e abandonou o sacerdócio revoltado com os retrocessos da Igreja Católica (parecia o fim de alguma coisa).

Enquanto isso via Zé Vicente beijando a boca de outro homem (pela primeira vez dois homens a se beijar à minha frente)... Enquanto isso me apaixonava pela primeira vez por outro homem... Percebi-me vivo para apreciar um mundo além das pastorais e além das causas sociais. Eu sou minha própria causa, eu sou essencial para mim... Precisava me encontrar urgente comigo mesmo para quem sabe estar de uma outra maneira interagindo e dialogando com as pessoas. Queria estar perto de minha mãe, principalmente porque ela passava por momentos difíceis com meu pai... Tinha que voltar pra casa sem dúvidas.

Me desvinculei totalmente da Igreja e das pastorais nesse período. Não queria rezar e nem celebrar, tão pouco discutir problemas acreditando que eles iriam ser resolvidos com utópicos engajamentos... Queria os ritos de criação apenas. Me queria.

Conheci pessoas e mais pessoas em festas que comecei a ir. Me interessava estar todo final de semana em forrós da Casa de Farinha dançando e bebendo... O profano me fascinava! Passei a conhecer outros lugares que eram habitados por pessoas... Me fascinava as pessoas. Queria o risco, sair de confortáveis convívios e me aventurar no conflito do “novo”.

Habitando clubes e festas da cidade percebi que muita gente linda dançava... Deu-me vontade de dançar com essa gente, de formar um grupo de dança com essas pessoas. Nascia aí o Dance Rua que mais tarde passaria se chamar de Grupo Balé Baião.

Como a dança me achou?

Relatos de quartos, galpões e palcos

Comecei a dançar no início da década de noventa em Itapipoca, cidade sem nenhuma tradição acadêmica de dança. Sempre tive necessidade de me expressar pelo corpo em movimentação livre, desgovernada, sem associar isso à dança. Na pré-adolescência costumava me trancar no quarto para liberar meu corpo numa descontrolada movimentação ao som de um gravador velho. Tinha como inspiração os espetáculos de dança que assistia de madrugada na TV enquanto todos dormiam. Além de analisar todos os detalhes das danças assistidas, tinha também que imitá-las tentando aprender os "passos" mais interessantes (geralmente os mais simples).

Certa vez, já na adolescência, assisti na antiga TVE (Televisão Educativa do Ceará) um bailarino solando. Seu corpo movimentava-se lentamente como se estivesse dentro d'água ou caminhando na lua. A partir desse momento quis fazer algo semelhante utilizando-me dos próprios movimentos que criava e passei a montar coreografias em solo para apresentar em eventos culturais da cidade. Nessa época já trabalhava com teatro popular. A experiência de lidar com público como ator alicerçou minhas primeiras tentativas de dançar, principalmente em se tratando de enfrentar grandes públicos como o do Festival Imperatriz da Canção de Itapipoca (FIC), evento no qual solei pela primeira vez. Lembro que apesar do grande nervosismo daquela noite, trazia comigo um grande desejo de mostrar para as pessoas o que eu sabia fazer. Tinha certeza que eu iria ser vaiado, afinal as pessoas não tinham costume de ver o que eu pretendia mostrar, porém, estava pronto para entrar em cena. Sempre fui muito audacioso. Nesse solo apresentava três momentos distintos: primeiro entrava como índio, depois fazia Zumbi dos Palmares e finalmente um mestiço. Sabia que iam rir dos figurinos, das músicas e do próprio movimento que ia mostrar, no entanto, falava mais alto a coragem. Se eu não desse aquilo pra eles quem iria dar e quando? Eu precisava ver o que iria acontecer comigo ao dançar e com as pessoas em geral. Era como um teste particular. Sempre fui curioso.

O que mais me surpreendeu e fascinou nesse solo foi a criação momentânea que nasceu de minha vontade enquanto dançava. O improvisar em plena apresentação (geralmente esquecia as marcações e criava outras) e a transformação do público no decorrer da apresentação, que foi pouco a pouco deixando de vaiar para aplaudir. Não acreditava ainda no que estava acontecendo, sentia-me inteiro, digno, pleno de alegria. Nunca mais parei de dançar.

Com o passar do tempo comecei a montar coreografias para peças teatrais e nisso passei a dividir o que sabia com outras pessoas. Às vezes me sentia meio que mentiroso por não saber muitas vezes o que dizer ou repassar para os outros. O que pra mim era dança estava sendo descoberto em minha prática intuitiva de criação individual. Tudo era muito particular.

Quando não sabia que "nomes dar" ou se faltava idéia de movimento para compor a coreografia, a única alternativa era inventar. Criava imediatamente uma palavra que resumisse o que eu estava querendo repassar ou pedir das pessoas e o próprio grupo era convidado a dar idéias para o término da dança. Rapidamente se resolvia o problema.

Não demorou para que todos começassem a me ver como o “dançarino da cidade”. Ao ouvir isso sempre sentia uma insatisfação comigo mesmo por não me achar merecedor de tal título. Era como se estivesse enganando a muita gente com uma mentira que não conseguia me livrar. Comecei a acreditar que isso poderia dar certo, queria mentir mais, inventar mais ainda que existia dançarino em Itapipoca, que a dança poderia ser possível, palpável, alguém tinha que mentir pelo bem daquela humanidade. Sentia-me desafiado a construir uma dança bem mais consistente, fundamentada em meus anseios de movimentação corporal. Pretendia me tornar seguro naquilo que estava fazendo, mas ainda não compreendia que somente pela intuição isso não seria possível. Foi aí que mais uma vez inventei uma alternativa: resolvi formar um grupo de dança para aprender mais com outras pessoas (dançarinos que descobri nas festas de final de semana). Precisava de um grupo para difundir a dança que começava a ser desenhada em Itapipoca e, sobretudo, para não me sentir o único dançarino da cidade. Desejava testar em outros corpos o que antes havia testado em mim: nascia o "Dance Rua".

Por mais que insistisse na sincronia dos dançarinos criando coreografias a partir dos ritmos e das letras das músicas, (Na época tinha fascinação em dançar os ritmos brasileiros. Coreografias a partir de temas étnicos-culturais e sócio-políticos) e mesmo que insistisse em ensaios enfadonhos, sempre quem acabava errando os "passos" era eu mesmo tendo que apelar para a conhecida improvisação. O público acreditava que meu improviso havia sido ensaiado; quanto aos dançarinos do grupo, passaram a se acostumar com minhas frequentes improvisações e não mais se admiravam com isso. A vontade de improvisar me levava sempre a incluir nos Shows de Ritmos do Dance Rua um solo meu, onde tinha oportunidade de fazer o que falava mais alto dentro de mim. Mantive esse “estilo” de trabalho durante três anos.

A partir de contatos com Andrea Bardawil (Cia Andanças), Silvia Moura, Gero Camilo (Ator cearense que fazia artes cênicas em São Paulo, militante como eu do Movimento de Artistas da Caminhada - MARCA), dentre outros profissionais da área de dança-teatro através do intercâmbio feito pela Secretaria de Cultura de Itapipoca com os mesmos (1996), passei então a me interessar pela dança contemporânea e acabei influenciando os dançarinos do Dance Rua a desenvolvê-la comigo em um novo grupo: o Balé Baião.

O primeiro espetáculo dessa nova fase: "Pátria Sertaneja, a dança do corpo rebelde", foi inteiramente coreografado por mim a partir das descobertas que tive em oficinas de dança, principalmente de sequencias coreográficas que deveriam ser feitas sincronizadamente. A grande ânsia era de "limpar" todos os gestos e movimentos dos dançarinos para que fossem fiéis ao percurso coreográfico em todos os detalhes. Pela primeira vez optei por coreografar um solo meu com marcações invioláveis. Era como se estivesse inconscientemente me preparando para uma futura libertação a partir de um aprisionamento.

Ainda nesse período tive a oportunidade de fazer algumas oficinas de Dança Contemporânea e Clássica. Apesar de achar tudo muito interessante sempre sentia dificuldades em acompanhar as variações que eram repassadas. Com relação ao Balé Clássico, procurava negá-lo por tê-lo como castrador e artificial. Comecei a ler muito sobre a história da dança e a partir da influência de alguns autores desenvolvi um imenso repúdio ao tecnicismo do balé.

Foi quando surgiu a chance de participar da audição para o Colégio de Dança do Ceará, na qual exigia que eu tivesse alguma noção de balé clássico e experiência em dança contemporânea. Além disso, tinha que apresentar um trabalho meu (Era necessário mostrar esse trabalho coreográfico para que eu fizesse o curso de capacitação de coreógrafos. Curso que desejava fazer a qualquer custo) solo ou grupal. Mostrei um fragmento do novo espetáculo do Balé Baião: "Etnia" em duo. Não teve jeito: comecei a dançar em sincronia com meu parceiro, mas em seguida quebrei com as marcações para improvisar. Para meu delírio fui selecionado e cursei o Colégio de Dança durante dois anos, tendo que trancar minha faculdade na UECE de Itapipoca (Pedagogia) e me mudar para Fortaleza. Desbravei para a capital e fui morar com o ator performance Orlângelo leal (que na época fazia o Colégio de Direção Teatral), arrumei empregos em escolas e projetos (ministrando aulas de dança para adolescentes) e passei a me dedicar totalmente ao colégio de dança.

Na semana fazia aula de balé clássico frequentemente, como também de Dança Moderna, Contemporânea, tradicional dentre outros módulos. No final de semana ia para Itapipoca dar assistência ao Balé Baião. Foram dois anos de muita persistência, ousadia e aprendizado. Na ocasião tive acesso a aulas de contato-improvisação com os melhores professores da área. Era como se tivesse encontrado o que buscava há muito tempo e não sabia como achá-lo. Quanto mais me mexia a partir de comandos que eram lançados, mais percebia que tudo o que havia aprendido anteriormente em outras aulas começava a se manifestar em meu corpo. Pensava eu que não estava conseguindo aprender nenhuma técnica de dança, talvez por não ter atenção o suficiente, corpo apropriado ou por ter passado da idade (estava com vinte e sete anos). Tudo me vinha à cabeça, menos que na hora certa meu corpo iria revelar tudo o que absorveu. À proporção que repetia aquele movimento descoberto e dele passava para outro, percebia que minha movimentação estava bem mais diversificada, segura e expansiva. Lidar com o movimento contido e explosivo em tempos diferentes, descobrir fios condutores para o percurso do gesto, escutar o meu silêncio interior, criar pelo ato de criar sem grandes preocupações com temas ou sequencias dramáticas; deixar o movimento falar por si próprio no fluxo do acaso; tudo isso passava a ser realidade no meu corpo que se movia e nas minhas concepções teóricas sobre a dança que desejava construir com o Balé Baião.

Minha grande meta passou a ser preparação técnica. Compreendi que se eu desejava ter bailarinos que improvisassem, precisava repassar para eles todos as técnicas de dança que conhecia a fim de nutri-los com novos códigos corporais que futuramente seriam base para de criação de movimento. Precisava apressar o processo de formação da Cia de forma prática e teórica, integrando a vivência corporal com o aprofundamento e a análise técnica.

Comecei a dar aulas dentro de um cronograma mensalmente organizado, sempre incluindo a prática de contato-improvisação, trabalhando exercícios aprendidos no Colégio de Dança do Ceará e jogos inéditos criados por mim em aula. Como resultado dessas vivências montei os espetáculos: "Etnia, o baião das três raças" e "Rebento, dançando o que restou".

O espetáculo "Rebento" foi um "divisor de águas" por introduzir na Cia a criação de solos e duos. Ele rompeu com todas as metodologias de criação que anteriormente foram utilizadas nos processos de montagem do Balé Baião. Deixei de mostrar com meu corpo tudo o que deveria ser feito na coreografia para que os próprios bailarinos descobrissem o seu movimento e tempo ideal. A partir de comandos que criei dentro das aulas comecei a provocar reações nos bailarinos quase sempre aproveitadas dentro de quadros coreográficos. Depois de certo tempo notei que havia desenvolvido vários comandos bem particulares, exclusivamente da Cia Balé Baião: exercícios de alongamento e aquecimento bem específicos, jogos que provocavam a criação individual e conjunta de movimento expressivo e caminhos de composição coreográfica. Decidi repetir esses exercícios em aula para melhor fixá-los e passei a analisá-los com os bailarinos da Cia para que juntos teorizássemos sobre o que estávamos fazendo. Desta maneira criou-se uma argumentação filosófica e técnica sistematizando o que seria a dança desenvolvida no Balé Baião.

Antes de qualquer outra característica o Balé Baião não mais desenvolve espetáculos com coreografias idealizadas por alguém. Os bailarinos são "donos de suas danças" assumindo a criação e a interpretação do que compuseram, dentro de uma concepção comum a todos, que funciona como fio condutor interligando uma coreografia a outra em busca de uma "dramaticidade fragmentada", desfazendo-se do tradicional "começo, meio e fim" para dar lugar a situações dançadas que tendem a não pertencer a lugar nenhum e ao mesmo tempo a todos os tempos, a história nenhuma e a todas as histórias vividas pela humanidade.